terça-feira, julho 18, 2006

Experimente o desconforto *

No princípio, o homem criou as organizações. E viu que ficaram boas. Deu-lhes forma e vida. Mas, ao contrário da gênese bíblica, a criação nunca conseguiu se separar de seu criador. Como organismos vivos e dependentes, as organizações espelham o perfil de seus integrantes. E, refletindo a essência humana, têm a qualidade de vida atrelada à capacidade de aprendizado. Aquelas que estacionam no tempo e no conhecimento encurtam suas chances de sobrevivência; mas as que aprendem constantemente podem aspirar a uma vida longa e saudável.

Diante do cenário dinâmico dos negócios e da urgência das transformações pessoais ou organizacionais, o vírus da zona de conforto tornou-se um dos mais perniciosos males do mundo corporativo. Ronda e ataca as organizações – ou os indivíduos que a compõem. Sua forma mais aguda de contágio se manifesta na cultura do “empurrão com a barriga”, espécie de letargia existencial que induz as empresas à complacência com o atraso, o erro e a inércia.

Curiosamente, as empresas que confortavelmente se tornam pioneiras ou líderes de mercado têm, em geral, baixa imunidade contra esse mal. O convite ao conforto já fez gigantes como a IBM deitar nos louros de sua posição dominante nos mainframes top-de-linha e pegar no sono durante a revolução dos computadores pessoais e das redes corporativas. Com seus parques lotados de carros grandes e confortáveis, a indústria de automóveis americana levantou tardiamente para reagir à concorrência japonesa, que ganhou terreno no segmento de veículos menores, mais econômicos, mais ágeis e com maiores recursos tecnológicos. A Xerox, inovadora no negócio de cópias, demorou a perceber que seu monopólio tecnológico havia acabado. Os anos “confortáveis” custaram à companhia não apenas a liderança do negócio, mas o virtual afastamento de um mercado muito maior, o de impressoras inteligentes.

E não adianta chorar o leite derramado. Aliás, a busca de defesas que justifiquem o marasmo estratégico é outro sintoma comum desse mal. Sob o argumento de que “mudar custa caro, traz demasiado sofrimento e acaba por mexer em questões muito sensíveis”, tentativas de mudança são abortadas ao menor sinal de obstáculos. Freqüentemente a impaciência com a aparente demora para a obtenção de resultados leva ao abandono prematuro desses projetos. Outras vezes, a superficialidade com que a mudança é tratada traz a sensação de que “mudar não adianta’’ e realimenta a busca pela zona de conforto.

Apesar de todos esses riscos de aborto, uma de suas principais responsabilidades como executivo é impedir que a sua empresa se entregue à aparente segurança da zona de conforto. Dentro dela, qualquer iniciativa tende a se tornar inócua, ainda que haja liderança, treinamento e processos azeitados de gestão. Prepare-se para conhecer – isto sim – o desconforto, que traz novas perspectivas de mercado e produz dinamismo aos negócios. Afaste a falsa impressão de que as crises não existem. Reconheça que, muitas vezes, elas apenas não se manifestaram, ou simplesmente não foram enfrentadas. Calçar os chinelos para se esquivar de conflitos é o mesmo que ativar uma bomba relógio, cujo pavio encurta na medida em que cresce o conhecimento disponível no mundo. Há quem esteja sendo transformado por esse conhecimento.

A sobrevivência e o crescimento só são possíveis na incômoda dimensão do aprendizado e da reciclagem. Pisar em terreno inóspito e enfrentar o medo e a insegurança são atitudes recomendadas, pois colaboram para descortinar horizontes que, do ponto de vista da zona de conforto, eram invisíveis. Lançar-se contra as crises com esforço e diligência pode trazer resultados inesperados e desdobramentos inimagináveis.

Portanto, prepare-se para o bom combate. O primeiro passo é enxergar limitações e estar pronto para aprender. O segundo é desaprender. Pessoas e organizações que aprendem constantemente são aquelas que têm a habilidade de reciclar conhecimento e motivar as pessoas de um time a entrar num círculo virtuoso de aprendizado. O terceiro passo é estruturar e divulgar de forma criativa essa nova realidade.

Processos participativos de planejamento são um dos instrumentos mais eficazes para estabelecer um ambiente perene de aprendizado contínuo. Permitem que as premissas sobre as quais se assenta o modelo de negócios de uma empresa sejam abertamente questionadas. Promovem a discussão franca desses pressupostos e do que precisa ser mudado. Mais importante, orientam a definição das novas habilidades e competências que uma organização deve adquirir para se adaptar à incessante mudança do ambiente em que opera. Implantado de forma sistemática, o planejamento participativo acaba por reduzir a “dor” do contato com as próprias limitações e cria nos gestores um mecanismo quase intuitivo de questionamento e estruturação de novas formas de agir.

Seja por meio de processos participativos de planejamento, seja por outros instrumentos de capacitação e treinamento, o desafio de uma organização é o de lidar com o medo natural da mudança e assegurar um ambiente de adequação permanente. Em outras palavras, transformar-se numa organização de aprendizado que assegure o crescimento contínuo dos seus integrantes. Para alcançar esse objetivo, talvez seja necessário experimentar o desconforto.

* Paulo Apsan, consultor de estratégia e organização de empresas, é presidente da Apsan Consulting Group (ACG)


Texto: Alexandre Volpi

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